quinta-feira, 11 de junho de 2009

A Universidade e a Cultura Popular - Conexões Possíveis e Necessárias

Por Gyannini Jácomo


I – Identificação

Para a UNESCO na sua 25ª Reunião, em Paris, no dia 15 de novembro de 1989, foi assim definida a cultura tradicional e popular:

A cultura tradicional e popular é o conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural fundadas na tradição, expressas por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente respondem às expectativas da comunidade enquanto expressão de sua identidade cultural e social; as normas e os valores se transmitem oralmente, por imitação ou de outras maneiras. Suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os rituais, os costumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes.


É um tema extremamente conturbado este, a cultura popular, pois, para alguns, este tema remete, imediatamente, à idéia de duas culturas. Uma popular e outra elitista.

O processo de formação da burguesia introduziu um dado novo – apresentar de forma escrita as histórias populares, ou seja, aquelas oralmente transmitidas. Até então, o “povo”, não sabia escrever e ler porque era facultado somente aos monarcas e seus correligionários a condição de escrita, mas com a constituição desta nova classe social (burguesia) que por sua natureza e necessidade política “democratiza” a escrita, para buscar junto ao povo a ascensão de poder. A burguesia moderna privatiza o eu, inaugura a propriedade privada, encontra sentido na mercadoria. Agora as “coisas” não são mais do Rei, somente, agora são dos pequenos comerciantes (traficantes de escravos e toda sorte de novos comerciantes). Nesta privatização, privatizou-se também com o tempo e a sofisticação do pensamento capitalista os sentidos, as obras coletivas, privatizaram antes de tudo o próprio homem. Criou-se um novo tipo de escravo. O escravo moderno não é dono de si, é reprodução, é desapropriado de sua capacidade criativa e transformado em máquinas sofisticadas e bem aparelhadas para produzirem mais. O telefone celular é tudo, inclusive celular. É neste cenário que nos encontramos e somos forçados a pensar sobre a tradição da cultura e a própria cultura popular. E é exatamente disto que se trata esta exposição.

Aqui tenho a intenção clara de defender um eixo ideológico: qual o tipo de Universidade devemos construir e qual o parâmetro conceitual esta deve apresentar à sociedade.

Não fosse por uma tradição, aliás, não universitária e antes da própria sociedade ─ e é preciso destacar o quão fora da vida cotidiana a Universidade está ─, as festas juninas, por exemplo, nem aconteceriam dentro da instituição. Se por um lado a festa junina ocorre dentro destes “muros” é por insistência de alunos, mas por outro lado também é preciso destacar que por muitas vezes não se tem a noção histórica destes festejos.

Festa Junina:

Da França veio a dança marcada, característica típica das danças nobres e que, no Brasil, influenciou muito as típicas quadrilhas. Já a tradição de soltar fogos de artifício veio da China, região de onde teria surgido a manipulação da pólvora para a fabricação de fogos. Da península Ibérica teria vindo a dança de fitas, muito comum em Portugal e na Espanha.

Todos estes elementos culturais foram, com o passar do tempo, misturando-se aos aspectos culturais dos brasileiros (indígenas,afro-brasileiros e imigrantes europeus) nas diversas regiões do país, tomando características particulares em cada uma delas

A História da Cultura Tradicional se manifesta de várias maneiras, por exemplo, para os trovadores Galego-Portugueses havia um tipo de cantiga que se chamava Cantigas Marinhas ou de Barcarolas, que só se manifestou em Portugal, não tendo nenhum outro registro em nenhuma outra parte do mundo naquele período (séc. XI ou XII), mas aparece aqui no Brasil nas mãos de Dorival Caymmi. Veja, segundo Segismundo Spina o que marca este tipos de cantiga:

... daí o encanto com que muitas vezes as sugestões do mar invadem os estados de alma da donzelinha saudosa – que vai admirar o movimento calmo das ondas, conversar com elas, pedir-lhes notícias de seu namorado, ou ainda esperar por elas as barcas em que partiu o amigo em alguma expedição guerreira. O mar também estava ligado a vida sentimental da donzela, pois a partida do amigo e nem sempre era por via terrestre. ...



É preciso destacar o papel que Spina desenvolve aqui. Nos servimos deste autor para nos narrar uma classificação do que é Cantiga de Barcarolas ou Marinhas.

E vejam a canção de Dorival Caymmi:

O mar quando quebra na praia
É bonito, é bonito
O mar... pescador quando sai
Nunca sabe se volta, nem sabe se fica
Quanta gente perdeu seus maridos seus filhos
Nas ondas do mar
O mar quando quebra na praia
É bonito, é bonito

Pedro vivia da pesca
Saia no barco
Seis horas da tarde
Só vinha na hora do sol raiá
Todos gostavam de Pedro
E mais do que todas
Rosinha de Chica
A mais bonitinha
E mais bem feitinha
De todas as mocinha lá do arraiá

Pedro saiu no seu barco
Seis horas da tarde
Passou toda a noite

Não veio na hora do sol raiá
Deram com o corpo de Pedro
Jogado na praia
Roído de peixe
Sem barco sem nada
Num canto bem longe lá do arraiá

Pobre Rosinha de Chica
Que era bonita
Agora parece
Que endoideceu
Vive na beira da praia
Olhando pras ondas
Andando rondando
Dizendo baixinho

Morreu, morreu, morreu, oh...
O mar quando quebra na praia



Bom, nesse exemplo é possível perceber a raridade dos versos de Dorival, mas é possível perceber a trajetória de um tipo de canção do século XI, também. Como isso se manifesta tão apuradamente, tão perfeito, entre conceito e obra? Penso que aqui existe uma marca profunda do estudo acerca do tradicional nas manifestações artísticas contemporâneas.

O que podemos concordar é que Dorival consegue, de forma espetacular compor um obra em nosso tempo com características semelhantes a aquelas medievais, portanto é possível fazer cultura tradicional e ter sentido nisto, a qualquer tempo.

Mas o que a Universidade tem a ver com isso? Como a Universidade pode e deve atuar junto às estas comunidades que realizam, em tempo, a tradição da cultura? Cultura Tradicional é a mesma coisa de conservador? Estudar a cultura popular e tradicional é realizá-la?

Estas, penso que são as perguntas que devemos aqui começar a fazer-nos. Não tenho a pretensão de responder tais questões, ao contrário, tenho o propósito, imediato, de iniciar as perguntas.


II – Cultura Popular



Mas vamos responder ao menos uma pergunta. Cultura Tradicional é a mesma coisa que Cultura Popular? Não, mesmo que a primeira esteja intrincada na segunda. Dançamos forró, que é uma manifestação popular, porque vem da tradição de se dançar no forrobodó. Mas é necessário diferenciá-las, porque as duas realizações se dão por motivos diferentes. Eric Hobsbawn elabora assim a questão da tradição:

“Por invenção das tradições, entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas. Tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado”1,

Enquanto que Cultura Popular se realiza na racionalização do saber popular, da tradição e é a elaboração do direito do fazer cultural e educacional por uma e para uma classe social.

III – Questão de classe

Para entender esta questão da Cultura Popular é necessário antes de tudo se posicionar historicamente. Se for por uma questão de classe que se vê o objeto, portanto deve também se colocar em qual classe você pertence. Não é possível a burguesia produzir cultura popular – a não ser como reificação. A economia capitalista expropria o objeto de arte de sua condição de arte e o coloca como mercadoria, parece-nos que assim deve ser, entretanto a qualidade do objeto e não está no quanto ele custa, ao contrário, está na condição de quanto aquele serve a humanidade ou a sua comunidade. O Funk carioca que era algo da própria comunidade, expresso de maneira a escape daquela condição, torna-se mais uma mercadoria. Então o que serviria para catarse ou como expressão de um descontentamento é reificado a guisa de um objeto de exploração sexual.

Mas há aqueles que querem, no seio do próprio movimento, transformar o expediente da criação popular em mercadoria, discursando que só há esse modo de fazer circular o bem cultural. Mas esquecem-se, esses produtores, que ao defender assim ajudam somente nesta retirada de significados, símbolos do objeto. Fazer circular o bem cultural não é vendê-lo, menos ainda dispor de maneira alienada este bem.

Por isso que estabelecer claramente o propósito da Universidade e qual seu papel é tarefa imediata dos setores progressistas dessa instituição. A Universidade tem a responsabilidade não só de estudar os eventos, mas principalmente intervir socialmente. Nesta condição é que a cultura popular se coloca muito mais a serviço dos setores organizados preocupados com a transformação e ressignificação social do que aqueles setores preocupados com uma universidade otimizada, voltada ao mercado e que constrói no seu seio Empresas Jr. justificadas na idéia de que devemos formar empreendedores para a gestão do capital. A universidade tem como tarefa histórica e por fruto de seu financiamento pensar para a comunidade que dela precisa de seus conhecimentos. E não é qualquer um setor da sociedade, é para aqueles que o capital explora e desapropria não só a condição de vida, como também daqueles que foram retirados o valor de seu trabalho.

A cultura popular juntamente com a educação popular (senão for a mesma coisa) são instrumentos concretos dos trabalhadores para a obtenção dos saberes científicos e de distribuição destes a eles próprios. Os grupos tradicionais e populares devem, assim como já vem ocorrendo, se apropriarem desta produção e transformar em conhecimento popular, organizadamente.

Para nós a certeza é de que para a realização cultural popular, deve-se observar em primeiro lugar que não há venda que justifique o valor da obra e segundo, a obra é popular e, portanto deve ser desta classe social e em terceiro lugar a maneira de estabelecer novas relações é se organizando e fazendo de suas construções, construções coletivas.

HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.



Gyannini Jácomo é Acadêmico de Letras da UFG

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